It - A Coisa (2017): Uma Análise Psicanalítica do Medo e do Inconsciente

Neste final de semana, pela primeira vez, assisti o filme "It - A Coisa" (2017), com meu filho mais velho, Pierre. Ao assistir pela segunda vez, consegui observar melhor alguns aspectos que podem nos ajudar a entender alguns conceitos psicanálise.
 
O filme "It – A Coisa" (2017), baseado no clássico de Stephen King, é mais do que uma simples narrativa de terror sobre um palhaço assassino. Sob a ótica da psicanálise, o filme se revela como uma profunda exploração dos medos infantis, dos traumas e das forças inconscientes que moldam o desenvolvimento psíquico. Pennywise, a criatura que assume a forma do palhaço, pode ser entendido como uma representação simbólica dos conteúdos reprimidos no inconsciente, que retornam de forma aterrorizante, fazendo com que os personagens infantis confrontem seus medos mais profundos.


Vamos explorar a trama do remake de "It" a partir de alguns conceitos-chave da psicanálise freudiana, como o retorno do recalcado, pulsão de morte, trauma infantil e mecanismos de defesa.

1. Pennywise como Manifestação do Inconsciente e o Retorno do Recalcado


No cerne da narrativa, Pennywise é uma criatura que se alimenta dos medos mais profundos de suas vítimas. Ele pode ser interpretado como uma personificação do inconsciente, especialmente do retorno do recalcado, conceito freudiano que descreve o processo em que conteúdos reprimidos (traumas, desejos ou medos) voltam à superfície da consciência em forma distorcida.

Para cada criança, Pennywise assume a forma de seu medo mais intenso — desde a fobia de palhaços até a culpa por traumas familiares, como no caso de Bill, que carrega a culpa pela morte de seu irmão, Georgie. Esse retorno dos medos reprimidos é um elemento central da psicanálise: quando algo é afastado do consciente, não desaparece, mas continua a influenciar o comportamento, retornando em formas disfarçadas. Pennywise não é apenas um monstro físico, mas a encarnação desses medos reprimidos, confrontando cada criança com aquilo que elas tentam evitar.

2. Traumas Infantis e a Formação do Ego


As crianças de Derry, conhecidas como o "Clube dos Perdedores", são marcadas por diversos traumas, que vão desde perdas familiares até abusos e violências. Na psicanálise freudiana, os traumas infantis desempenham um papel crucial no desenvolvimento da psique, influenciando a formação do ego e do superego. Esses traumas reprimidos, quando não processados adequadamente, podem emergir na forma de neuroses e/ou medos irracionais.

Cada um dos membros do Clube dos Perdedores tem uma história de trauma:

- Bill lida com o trauma da morte de seu irmão, Georgie, e a culpa que sente por não ter cuidado dele.
- Beverly enfrenta o abuso de diversas forma por parte do seu pai, refletindo os complexos de dominação e controle na família.
- Eddie sofre com o controle excessivo de sua mãe, que o faz acreditar que é frágil e doente, o que simboliza um apego ao cuidado materno e a construção de um corpo como lugar de vulnerabilidade.

Esses traumas formam o núcleo emocional dos personagens e são o ponto de entrada para o ataque de Pennywise, que explora suas fraquezas psicológicas. A relação entre trauma e medo, central ao filme, reflete como o ego tenta proteger-se reprimindo experiências dolorosas, enquanto o inconsciente, representado por Pennywise, insiste em fazer esses traumas retornarem.


3. Pulsão de Morte e o Medo da Destruição


Freud postulou que o ser humano é movido por duas grandes pulsões: a pulsão de vida (Eros), que visa à preservação e à construção de laços, e a pulsão de morte (Thanatos), que busca a destruição, o retorno ao estado inanimado. Pennywise, como uma entidade predadora que visa a destruição das crianças, pode ser visto como uma representação da pulsão de morte.

A cidade de Derry, que periodicamente sofre com a presença do mal encarnado em Pennywise, pode ser interpretada como um lugar onde essa pulsão de morte se manifesta de forma cíclica, trazendo destruição e violência. O próprio palhaço alimenta-se do medo, utilizando a morte como ferramenta de poder, o que se conecta diretamente à pulsão destrutiva que permeia o inconsciente humano.

No enfrentamento de Pennywise, as crianças, ao se unirem e se oporem ao monstro, simbolizam a luta entre Eros (a pulsão de união e preservação da vida) e Thanatos (a destruição). Ao confrontar a figura do palhaço, elas resistem à destruição psicológica que o medo e o trauma poderiam impor a elas.

4. Mecanismos de Defesa e a Superação do Medo


Cada uma das crianças, ao longo do filme, utiliza diferentes mecanismos de defesa para lidar com seus traumas e medos:

- Bill reprime a dor pela perda de seu irmão, focando sua energia em encontrar uma explicação racional para o desaparecimento de Georgie.
- Beverly tenta negar o abuso que sofre em casa, mantendo uma fachada de força, mesmo quando sua situação é insustentável.
- Eddie usa a somatização (expressão de sofrimento emocional através de sintomas físicos) para justificar seu medo do mundo exterior, acreditando que está sempre doente. Este é um ótimo exemplo do Retorno do Recalcado.

No decorrer da narrativa, esses mecanismos de defesa são desafiados, e os personagens precisam confrontar diretamente seus medos. Esse processo de enfrentamento reflete a ideia freudiana de que, para que haja cura, é necessário trazer o conteúdo reprimido à consciência e enfrentá-lo. No clímax do filme, as crianças, unidas, precisam reconhecer seus medos mais profundos e encarar Pennywise diretamente, o que simboliza o processo de integração psíquica e superação do trauma.

5. O Papel da Amizade como Superego Coletivo


O Clube dos Perdedores pode ser interpretado como um superego coletivo, onde a amizade e o apoio mútuo servem como uma estrutura moral e de proteção contra os ataques de Pennywise. Na psicanálise, o superego é a instância que internaliza as normas e valores sociais, regulando o comportamento do ego. Da mesma forma, a união dos amigos funciona como uma rede de suporte emocional que lhes permite enfrentar seus medos e traumas.

O confronto final com Pennywise só é possível porque eles se apoiam mutuamente, formando uma força coletiva que transcende seus medos individuais. Isso reflete a capacidade do superego de moldar e fortalecer o ego frente às ameaças do inconsciente (Pennywise) e às pulsões destrutivas. É possível também aqui, articular esta situação final com conteúdos sobre os quais Freud descreveu em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921).

Conclusão: O Terror Psicológico de It


O filme "It – A Coisa" é, em sua essência, uma narrativa sobre o medo e o trauma, e como esses elementos reprimidos no inconsciente podem retornar de forma assustadora e incontrolável. Através da figura de Pennywise, Jordan e Andy Muschietti criam uma metáfora poderosa do retorno do reprimido, onde os medos mais profundos das crianças são materializados e precisam ser enfrentados para que possam evoluir e amadurecer.

Assim, o terror em It não é apenas o medo do desconhecido, mas o medo do que está dentro de nós mesmos — nossas fraquezas, nossos traumas e as partes da psique que tentamos enterrar. É um filme que, sob a ótica da psicanálise, oferece uma análise rica sobre o funcionamento do inconsciente e sobre como os conteúdos reprimidos, quando não confrontados, podem se tornar forças destrutivas.

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