Neste final de semana, pela primeira vez, assisti o filme "It - A Coisa" (2017), com meu filho mais velho, Pierre. Ao assistir pela segunda vez, consegui observar melhor alguns aspectos que podem nos ajudar a entender alguns conceitos psicanálise.
Vamos explorar a trama do remake de "It" a partir de alguns conceitos-chave da psicanálise freudiana, como o retorno do recalcado, pulsão de morte, trauma infantil e mecanismos de defesa.
1. Pennywise como Manifestação do Inconsciente e o Retorno do Recalcado
No cerne da narrativa, Pennywise é uma criatura que se alimenta dos medos mais profundos de suas vítimas. Ele pode ser interpretado como uma personificação do inconsciente, especialmente do retorno do recalcado, conceito freudiano que descreve o processo em que conteúdos reprimidos (traumas, desejos ou medos) voltam à superfície da consciência em forma distorcida.
Para cada criança, Pennywise assume a forma de seu medo mais intenso — desde a fobia de palhaços até a culpa por traumas familiares, como no caso de Bill, que carrega a culpa pela morte de seu irmão, Georgie. Esse retorno dos medos reprimidos é um elemento central da psicanálise: quando algo é afastado do consciente, não desaparece, mas continua a influenciar o comportamento, retornando em formas disfarçadas. Pennywise não é apenas um monstro físico, mas a encarnação desses medos reprimidos, confrontando cada criança com aquilo que elas tentam evitar.
2. Traumas Infantis e a Formação do Ego
As crianças de Derry, conhecidas como o "Clube dos Perdedores", são marcadas por diversos traumas, que vão desde perdas familiares até abusos e violências. Na psicanálise freudiana, os traumas infantis desempenham um papel crucial no desenvolvimento da psique, influenciando a formação do ego e do superego. Esses traumas reprimidos, quando não processados adequadamente, podem emergir na forma de neuroses e/ou medos irracionais.
Cada um dos membros do Clube dos Perdedores tem uma história de trauma:
- Bill lida com o trauma da morte de seu irmão, Georgie, e a culpa que sente por não ter cuidado dele.
- Beverly enfrenta o abuso de diversas forma por parte do seu pai, refletindo os complexos de dominação e controle na família.
- Eddie sofre com o controle excessivo de sua mãe, que o faz acreditar que é frágil e doente, o que simboliza um apego ao cuidado materno e a construção de um corpo como lugar de vulnerabilidade.
Esses traumas formam o núcleo emocional dos personagens e são o ponto de entrada para o ataque de Pennywise, que explora suas fraquezas psicológicas. A relação entre trauma e medo, central ao filme, reflete como o ego tenta proteger-se reprimindo experiências dolorosas, enquanto o inconsciente, representado por Pennywise, insiste em fazer esses traumas retornarem.
3. Pulsão de Morte e o Medo da Destruição
Freud postulou que o ser humano é movido por duas grandes pulsões: a pulsão de vida (Eros), que visa à preservação e à construção de laços, e a pulsão de morte (Thanatos), que busca a destruição, o retorno ao estado inanimado. Pennywise, como uma entidade predadora que visa a destruição das crianças, pode ser visto como uma representação da pulsão de morte.
A cidade de Derry, que periodicamente sofre com a presença do mal encarnado em Pennywise, pode ser interpretada como um lugar onde essa pulsão de morte se manifesta de forma cíclica, trazendo destruição e violência. O próprio palhaço alimenta-se do medo, utilizando a morte como ferramenta de poder, o que se conecta diretamente à pulsão destrutiva que permeia o inconsciente humano.
No enfrentamento de Pennywise, as crianças, ao se unirem e se oporem ao monstro, simbolizam a luta entre Eros (a pulsão de união e preservação da vida) e Thanatos (a destruição). Ao confrontar a figura do palhaço, elas resistem à destruição psicológica que o medo e o trauma poderiam impor a elas.
4. Mecanismos de Defesa e a Superação do Medo
Cada uma das crianças, ao longo do filme, utiliza diferentes mecanismos de defesa para lidar com seus traumas e medos:
- Bill reprime a dor pela perda de seu irmão, focando sua energia em encontrar uma explicação racional para o desaparecimento de Georgie.
- Beverly tenta negar o abuso que sofre em casa, mantendo uma fachada de força, mesmo quando sua situação é insustentável.
- Eddie usa a somatização (expressão de sofrimento emocional através de sintomas físicos) para justificar seu medo do mundo exterior, acreditando que está sempre doente. Este é um ótimo exemplo do Retorno do Recalcado.
No decorrer da narrativa, esses mecanismos de defesa são desafiados, e os personagens precisam confrontar diretamente seus medos. Esse processo de enfrentamento reflete a ideia freudiana de que, para que haja cura, é necessário trazer o conteúdo reprimido à consciência e enfrentá-lo. No clímax do filme, as crianças, unidas, precisam reconhecer seus medos mais profundos e encarar Pennywise diretamente, o que simboliza o processo de integração psíquica e superação do trauma.
5. O Papel da Amizade como Superego Coletivo
O Clube dos Perdedores pode ser interpretado como um superego coletivo, onde a amizade e o apoio mútuo servem como uma estrutura moral e de proteção contra os ataques de Pennywise. Na psicanálise, o superego é a instância que internaliza as normas e valores sociais, regulando o comportamento do ego. Da mesma forma, a união dos amigos funciona como uma rede de suporte emocional que lhes permite enfrentar seus medos e traumas.
O confronto final com Pennywise só é possível porque eles se apoiam mutuamente, formando uma força coletiva que transcende seus medos individuais. Isso reflete a capacidade do superego de moldar e fortalecer o ego frente às ameaças do inconsciente (Pennywise) e às pulsões destrutivas. É possível também aqui, articular esta situação final com conteúdos sobre os quais Freud descreveu em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921).
Conclusão: O Terror Psicológico de It
O filme "It – A Coisa" é, em sua essência, uma narrativa sobre o medo e o trauma, e como esses elementos reprimidos no inconsciente podem retornar de forma assustadora e incontrolável. Através da figura de Pennywise, Jordan e Andy Muschietti criam uma metáfora poderosa do retorno do reprimido, onde os medos mais profundos das crianças são materializados e precisam ser enfrentados para que possam evoluir e amadurecer.
Assim, o terror em It não é apenas o medo do desconhecido, mas o medo do que está dentro de nós mesmos — nossas fraquezas, nossos traumas e as partes da psique que tentamos enterrar. É um filme que, sob a ótica da psicanálise, oferece uma análise rica sobre o funcionamento do inconsciente e sobre como os conteúdos reprimidos, quando não confrontados, podem se tornar forças destrutivas.
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